Por Domingos Sávio
Maximiano Roberto
Padre Cícero, santo e herói
da Pátria
No dia 20 do último mês de julho, completaram-se 90 anos da
morte do padre Cícero Romão Batista, falecido em 1934. Nascido no Crato/CE em 24
de março de 1844 e ordenado padre em 1870, em Fortaleza/CE, voltou à sua terra
natal, quando foi designado capelão da Igreja de Nossa Senhora das Dores, no
então povoado de Juazeiro, pertencente à freguesia do Crato. Ali, Cícero se
tornou um verdadeiro cura d’almas. Era um padre que valorizava as pregações,
visitava as casas de seus fiéis, ouvia confissões, dava conselhos e
ensinamentos para o enfrentamento das secas, praticava caridade, enfim, um
verdadeiro pastor.
Mesmo cuidando das coisas da religião, o padre exercia também
ingerência na política da região polarizada pelo Crato o que o fez, mais tarde,
galgar os postos de prefeito de Juazeiro, deputado estadual e vice-governador
do estado do Ceará. À época de Cícero, havia somente uma diocese no Ceará,
sediada em Fortaleza, comandada pelo bispo dom Joaquim José Vieira – esse prelado
mantinha uma relação por demais harmoniosa com o padre Cícero chegando a tecer
elogios ao sacerdote quando dizia ser, o padre Cícero: “Uma joia da Igreja”.
Pela força do destino aconteceu, mais tarde, um fato inesperado que provocou
uma reviravolta na vida do padre Cícero Romão Batista, e o fez tornar-se a
“ovelha negra” da Igreja.
No dia 1º de março de 1889, durante a celebração de uma
missa, na Sexta-Feira Santa, quando no ato da distribuição da comunhão aos seus
fiéis, o padre Cícero, ao depositar a hóstia – fruto da transubstanciação – na boca
da beata Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo, a partícula sagrada
converteu-se em sangue. De imediato, os devotos presentes afirmaram que se
tratava de um milagre e que a hóstia havia se transformado no sangue de Nosso Senhor
Jesus Cristo. Espalhada a notícia do “milagre”, muitos acorreram ao Juazeiro
para constatar esse fenômeno da presença Divina, em forma de sangue, o que
passou a ocorrer todas as vezes em que o sacerdote dava a comunhão à pobre
beata.
Maria de Araújo, uma cafuza, quase negra, analfabeta,
raquítica e de saúde mental prejudicada, era uma donzela juramentada que optara
pelo voto de castidade e, entonada num tosco hábito (similar aos das freiras),
servia na casa do padre e, sem nenhuma pretensão, viu-se de repente no olho do
furacão como protagonista do “milagre”, fato que teve repercussão gigantesca.
Padre Cícero, sem explicação para o que seria uma manifestação Divina, mesmo
assim não desestimulou que os fiéis fizessem desse acontecimento inexplicável,
algo milagroso e passível de adoração. Pelo contrário, estimulou, quando até o
lenços usados para enxugar o sangue da boca da beata serviam como peça de veneração.
O suposto milagre reverberou por todo o estado do Ceará
chegando aos ouvidos do bispo de Fortaleza, dom Joaquim José Vieira que,
imediatamente, determinou a formação de uma comissão, composta por dois padres,
para que fosse procedida uma investigação sobre a veracidade do caso. Numa
primeira análise, a comissão atestou ser verdadeira a transformação da hóstia
em sangue. Todavia, não satisfeita, a autoridade eclesiástica, determinou uma
nova investigação com a incumbência de que fosse desmontado o “milagre”, o que
acreditava ser uma farsa. Assim foi feito e, nessa segunda diligência, a
comissão optou por determinar inverídico o “milagre” do Juazeiro. No curso das
investigações, um religioso francês, padre Pierre-Auguste Chevalier, da Diocese
de Fortaleza, de forma jocosa e preconceituosa, teceu o seguinte comentário:
“Nosso Senhor não iria deixar a Europa para fazer milagres no Brasil”.
Em face do resultado da nova análise, que veio a seu contento,
o prelado, fazendo jus ao eurocentrismo do auxiliar francês e diante da
discordância do padre Cícero em face do veredicto da Comissão, suspendeu o
padre Cícero das ordens sacerdotais, proibindo-o de celebrar missas e de
oficiar quaisquer sacramentos. Suspenso, o cura de Juazeiro se afastou por
algum tempo de sua Capela e foi passar uns dias na cidade de Salgueiro/PE, na
casa de um sobrinho da “coronela” cearense, dona Fideralina Augusto.
Tempos depois, o padre retornou ao Juazeiro e, mesmo
proibido, passou a casar e batizar, além de fazer sermões particulares em frente
à sua residência, o que atraía centenas de fiéis. Por conta do “milagre”, das
pregações e da influência política do padre Cícero, acorreram muitos para Juazeiro
e o lugar passou por uma onda de progresso e logo se transformou numa vila
bastante próspera, chegando a superar - em tamanho e população – a sede do
município, Crato. Em 1911 o antigo arruado do Juazeiro se tornou cidade e teve
como seu primeiro prefeito o padre Cícero Romão Batista.
Insatisfeito com as punições impostas, o padre Cícero
resolveu ir a Roma tratar diretamente com o Papa. Chegando à Cidade Eterna, o
padre cearense hospedou-se num colégio de freiras aguardando ser recebido pelo
chefe da Igreja Católica, o papa Leão XIII (1878-1903). Não conseguindo esse desiderato,
foi examinado pelo Tribunal do Santo Ofício, que remeteu ao Papa um Relatório sobre
todas as ocorrências no Juazeiro. Enquanto isso, Cícero ficou no aguardo da
decisão papal, o que só veio quando ele já retornara ao Juazeiro. Sem muita
surpresa, o padre recebeu a sentença do Sumo Pontífice que, em sua
infalibilidade, confirmava o que havia sido determinado pelo bispo de
Fortaleza.
Afastado em definitivo de suas obrigações sacerdotais e sem
esperança da absolvição, Cícero adentrou de vez no mundo da política quando, em
1914, aliou-se ao governador deposto do Ceará, Nogueira Aciolly e lutou no
episódio conhecido como “Sedição de Juazeiro” quando as forças restauradoras
derrotaram a polícia cearense do então governador Franco Rabelo, o que
proporcionou a recondução do seu amigo Nogueira Aciolly ao cargo de governador
do Estado e, com isso, o padre revestiu-se de grande prestígio junto aos donos
da ordem reestabelecida.
A reconciliação do padre Cícero com a Igreja de Roma só veio
acontecer em 2015 quando o papa Francisco aceitou a abertura do processo de
beatificação do sacerdote cearense. A partir daí, Cícero passou a ser
considerado um “Servo de Deus”, a caminho da reabilitação, o que poderá levá-lo
a ser um dia Beato e, tal qual Joana D’Arc - que foi também excomungada,
queimada na fogueira da Santa Inquisição e, depois, tornada santa - até ser canonizado Santo da Igreja que lhe
excomungou. Desde então, a imagem do “Padim Ciço” teve a permissão para ser
exibida nas Igrejas da religião Católica.
Na verdade, para o povo do Juazeiro e de quase todo o
Nordeste brasileiro, o padre Cícero já é considerado um Santo; mesmo porque,
sem a anuência do Vaticano, mas com a aclamação dos devotos, Cícero já é, há
muito tempo, considerado um santo popular consagrado pelos fiéis, porém não
reconhecido (ainda) pela Igreja quando acusado de heresia foi condenado um dia.
Nesse caso, a infalibilidade do papa Francisco tem sido muito mais benéfica à
fé nordestina – quando reabilita o padre Cícero - do que a falível decisão do
papa Leão XIII quando ratificou sua excomunhão. Malgrado a hipocrisia e a
incoerência da Igreja Católica, quando reabilita o Padre Cícero com o intuito
de estancar a sangria desatada de fiéis católicos rumo aos cultos evangélicos,
só podemos acrescentar que: Roma locuta,
causa finita est.
Não bastasse a absolvição
eclesiástica promovida pela Igreja Católica, em 2015, pelas mãos do Papa
Francisco, o padre Cícero Romão Batista foi também reconhecido pelo poder civil
e é agora considerado “Herói da Pátria”. Através da Lei nº 14.693/23, de
iniciativa do presidente Luís Inácio Lula da Silva e aprovada pelo Congresso
Nacional e que1 foi sancionada em 11 de outubro de 2023, com o seguinte teor:
Art. 1º Fica inscrito no Livro dos Heróis e Heroínas da
Pátria, que se encontra no “Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves”,
em Brasília, Distrito Federal, o nome do Padre Cícero Romão Batista.
Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Além de ser considerado “Servo de
Deus” pela Igreja de Roma e Santo Popular pela maioria dos nordestinos, Padre
Cícero é agora também, um Herói da Pátria. Rehabilitatio
quae sera tamen!
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