Os fatos me impõem que minhas lembranças retornem aos anos setenta, do século passado. E agora não estou falando de matéria ficcional. São fatos, e os fatos têm vida própria, quer seja para o bem ou para o mal, e atropelam toda e qualquer especulação, simplesmente porque o passado já faz parte da história, e a história é parte da própria vida de cada indivíduo. Para quem não se lembra ou nasceu depois dos anos setenta, lembro que o cabaré de Princesa ficava onde hoje é o bairro Cruzeiro, na primeira rua que se localiza à esquerda da entrada de Princesa, depois de passado o Açude Novo, no sentido de quem vem da Capital. Era um local de parada quase obrigatória dos homens solteiros da cidade. Havia várias jovens solícitas naquele local, muita música, bebida e paz incomparavelmente maior do que a que temos hoje, no nosso contidiado. Um dia a paz foi interrompida naquele ambiente de divertimento. E tudo começou com a presença de Chico Chambão, armado com um revólver calibre trinta e oito, de cinco tiros e da marca Rossi.
Depois de embriagar-se Chambão imaginou-se homem, na real dimensão que esta palavra comporta, e daí para mais algumas bicadas de cachaça, também sentiu-se valente e se iniciou a provocar os presentes, naquela noite infeliz. Beiçola foi um de seus preferidos. Um ponto de descarrego, uma cabaia para a sua nova experiência de "homem integral", levado pela frágil e momentânea valentia alcoólica, aliada à certeza de que contava com uma notável superioridade bélica contra o seu novo oponente. Mas tudo se deu de maneira completamente errada. Ao sacar o revólver Chambão viu que faltava algo especial para que ele disparasse. Havia uma ausência essencial, e logo naquele momento, no qual Beiçola se preparava para fazer-lhe uma cirurgia, sem anestesia e quaisquer preparativos operatórios.
Naquela cena real do passado havia uma faca, um homem pronto a usá-la, e apenas um revólver na mão esquerda de um covarde. Ocorre que Chambão possui uma língua imensa, não tem a menor ideia do que seja honra, gosta de - gratuitamente - agredir as pessoas e é incapaz de, na hora do acerto de contas, do momento final do ajuste, onde as palavras não servem de absolutamente nada, defender a própria vida. Na noite do cabaré de Princesa, a mão esquerda de Chambão tremeu, as pernas tremeram, ele ficou pálido como vela e, embora ouvisse a voz do amigo gritando atire, atire, você vai morrer... Chambão ficou parado, esperando, como paciente em hospital, que Beiçola fizesse a sua intervenção médica. Foi aí que o amigo tomou-lhe o revólver das mãos, trêmulas e imprestáveis, e acabou por exercer aquilo que no direito se chama legítima defesa de terceiros. O amigo salvou a vida do covarde provocador, mas, passados tantos anos tenho que esclarecer: Chambão nunca teve e jamais terá amigos. Ele tem única é exclusivamente interesses, e uma coleção memorável de inimigos. Pessoas que foram ofendidas por ele. Esse é apenas o primeiro capítulo, parodiano o grande escritor argentino Jorge Luis Borges, da "História Universal da Covardia e da Canalhice". Você, caro leitor, que chegou até aqui em leitura, quero lhe avisar: Chambão possui a coragem de uma lesma morta. Não leve o seu celular quando estiver com Chambão. Nessa modalidade ele é um verdadeiro mágico. Um grande ocultista.
Um homem da "ideologia," serviçal do poder. Alguém que foi subserviente a todos os governadores deste Estado. De Tarcísio Burity a João Azevêdo. Um bobo de corte. Alguém que se passa por palhaço pornográfico, para trocar uma graça sem graça por cargo. Beiçola acabou morrendo porque foi o escolhido daquela noite. Escolhido porque, dentre outras coisas, era o mais pobre do recinto. A favor dele, que eu me lembre, apenas um pai, doente mental e indefeso. Eis a bravura do nosso herói. A síntese de sua vida disforme e com método: agredir e, quando chega a hora do acerto de contas, ele vem se valer dos outros. Um velho canalha que finge não ter chegado à maioridade.
Letinho
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