ODE

domingo, 8 de outubro de 2023

Domingo eu conto

 

Por Domingos Sávio Maximiano Roberto

A Boneca de Maria Aurora

Na Princesa das décadas de 1950/60, a política era por demais acirrada. Rescaldo dos acontecimentos de 1930, as duas famílias tradicionais - Pereira e Diniz -, que representavam os dois partidos políticos antagônicos, se digladiavam em tudo. Até na Igreja da cidade, para assistirem às missas, tinham lugares separados, com cadeiras personalizadas. O Sacrário - depósito do resultado da transubstanciação, fora presenteado por Nominando Muniz Diniz (“seu” Mano) e, os sinos que badalavam no campanário da Igreja Matriz, foram concedidos por obséquio do coronel Marcolino Pereira Lima, ainda no século XIX. A família Diniz era mais religiosa do que a dos Pereira. Maria Aurora, a filha mais velha de “seu” Mano, uma carola, era assídua frequentadora dos ofícios religiosos, o que fazia sempre na companhia da tia materna, Maria Sérgio, a quem chamavam, no seio familiar, de “Tatá”.

O advogado, Nominando Diniz Neto, mais conhecido por “Manito”, filho do falecido, também advogado, José Nominando Diniz e, portanto, neto do líder político de Princesa, Nominando Muniz Diniz (“seu” Mano), dizia que sua tia Maria Aurora Diniz (chamada carinhosamente - pelos familiares, agregados e pessoas íntimas - de “Tita”), mesmo sendo muito religiosa, dava guarida às coisas do Além. Tita possuía uma boneca de louça italiana que lhe havia sido presenteada por dona Zelita (esposa do médico e político doutor Severiano dos Santos Diniz), trazida de sua terra natal, Salvador, no estado da Bahia quando de uma de suas visitas àquela cidade para rever familiares. A Boneca, que era guardada num quarto escuro da chamada “Casa Grande”, dentro de uma caixa de papelão, dizia, Manito – o que reza o folclore político de Princesa até hoje -, tinha poderes sensoriais e previa as vitórias e as derrotas eleitorais daquele grupo político. Adivinhava e avisava quando a campanha eleitoral era positiva ou negativa para o grupo liderado por Nominando.

Agregados da “Casa Grande”, diziam que a Pitonisa de faiança, quando perguntada por Tita, se o candidato do partido ganharia a eleição, ela [a Boneca], balançava a cabeça, afirmativa ou negativamente. Esse ritual era repetido várias vezes durante a campanha, dando assim, oportunidade de quando, a Boneca, afirmasse através de gestos, que a eleição estava difícil de lograr êxito, fossem feitas as necessárias correções de rumo, para que, o “brinquedo sensitivo” mudasse de opinião. Em contrapartida a isso, segundo Manito, quando o “brinquedo adivinhão” insistia na negativa de sucesso eleitoral, era punido ficando posto de castigo ou levando surras, infligidas por “Tatá”, que era uma figura estranha pelo fato de vestir-se toda de preto, com um véu também negro a lhe cobrir a cabeça, deixando à mostra apenas as mãos e o rosto enfeiado por um grande nariz. Para completar esse conjunto exótico, a velha, se apoiava, constantemente, num guarda-chuva que, se fora uma vassoura, lhe cairia mais adequado.

Quando a Boneca assentia afirmativamente, acordando com a perspectiva de êxito nas urnas, mantinham-se, os candidatos e cabos eleitorais, pisando em ovos, mas seguindo o mesmo comportamento e as mesmas diretrizes até ali adotados, aguardando apenas a confirmação da vitória nas urnas. Nesses momentos a Boneca era tratada a pão-de-ló. Eram-lhes dados banhos; ganhava novas roupas; sendo também cumulada de afagos vários. Para esses cuidados tinha, a “calunga adivinhona”, designadas as agregadas, Raimunda de Pajeú e Maria Mombaça. Porém, no mais das vezes, algumas pessoas recém-ligadas ao partido, os adesistas, chamados “Cristãos Novos”, para confirmarem sua ainda duvidosa lealdade, se dispunham, esmeradamente, a cuidar da Boneca de Maria Aurora. Dizem, a boca pequena, que até banhos de sais e ervas eram dados no brinquedo que adivinhava.

Nas eleições municipais de 1959 e de 1963 as previsões da Boneca causaram alguns dissabores e grande confusão. No pleito de 1959, ocasião em que concorreu, à prefeitura, Antônio Maia pelo partido nominandista, contra Zacharias Sitônio pelo grupo “Pereira”, a Calunga insistia em balançar a cabeça, negativamente, quanto à vitória de Maia. Apanhou que só couro de pisar fumo e, quase caiu em total descrédito quando, proclamado o resultado da eleição, Antônio Maia foi declarado eleito. Todavia, logo após a eleição, surgiram notícias de que, o prélio eleitoral havia sido fraudado e que o verdadeiro vencedor havia sido Zacharias Sitônio. Mesmo assim, ficou o dito pelo não dito e, Antônio Maia, governou o mandato inteiro.

Outra situação em que a Boneca foi questionada em suas previsões foi em 1963 quando o patriarca do grupo “Diniz”, o velho Mano, concorreu, pela terceira vez, à prefeitura de Princesa. Franco favorito, o velho caudilho, teve como adversário o genro do coronel Zé Pereira, Gonzaga Bento, tido como azarão. A Pitonisa, à revelia da crença de todos, durante toda a campanha, insistia em negar a vitória do velho Nominando. Em face dessa impensável desobediência, sofreu o pão que o diabo amassou quando levou surras homéricas. Porém, abertas as urnas, a Boneca reabilitou-se perante a todos quando constatou-se a vitória de Gonzaga Bento. Seu Mano perdeu a primeira eleição de sua vida. E, foi também essa, a última previsão da Boneca.

Depois da morte de Tita, no ano de 2002, a chamada “Boneca de Maria Aurora”, desapareceu misteriosamente. Se folclore ou não, a verdade é que essa história é de domínio público. A maioria dos membros da família Diniz dizia e diz, ainda hoje, que essa estória foi criada pelos adversários com o intuito de atribuir a Maria Aurora práticas de bruxaria, porém, a conotação dada por Manito era puramente folclórica e, claro que jamais envolvendo atos de feitiçaria, pois, Tita, era mesmo muito religiosa e não afeita a essas atividades. Na verdade, a famigerada Boneca tem mesmo é o condão de enriquecer o folclore político de Princesa.



 

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