Por Domingos Sávio
Maximiano Roberto
O besouro salvador
Manoel Martins era um velho muito encartado e por demais
libidinoso. Quando jovem e até a meia-idade, era tido como um dos maiores
mulherengos de Princesa, o homem fazia sucesso com as mulheres. Caído na idade
– na era ainda pré-viagra – insistia em ter conjunções carnais com moças jovens
– o que era sua preferência – e para tanto, em busca do vigor necessário
recorria a tudo, inclusive às “simpatias” que lhes ensinavam e tomava todas as
meizinhas que lhes receitavam, só não queria sair da farra.
Era um homem branco, alto, elegante quando sempre vestido num
terno de linho branco mal engomado, e se deslocava pela cidade montado num
grande e garboso cavalo manga-larga marchador. Gostava de jogar baralho e era
afeito a algumas lapadas de cachaça, o que fazia com certa parcimônia. Em que
pese sua exuberante alegria, o que denotava educação e civilidade, era valente
e não abria para ninguém. No intuito de garantir essa fama de belicoso, Manoel
Martins levava à cinta, uma peixeira e, no mais das vezes, uma pistola mauser.
Malgrado essa fama de valente, nunca se registrou uma
imbuança de Martins com quem quer que fosse. Comerciante do ramo da compra e
venda de gado, fazia as feiras – além de Princesa – nas praças de Tabira e São
José do Egito onde tinha amantes em cada uma dessas cidades pernambucanas e, quando
visitava alguma cidade que não tinha hospedaria, se alojava no Cabaré. Era um
aficionado por sexo. Casado com dona Gertrudes, mesmo assim, nunca deixou de
manter um comportamento como se fora solteiro.
Dona Gertrudes, a quem chamava de “Duda”, era uma mulher
pacata e subserviente, cônscia de seu dever como esposa. Sem filhos – Manoel
Martins não gerava, era “maninho” – o casal vivia na languidez do lar e em paz.
A mulher, nunca lhe impôs exigência de fidelidade e passava ao largo quanto aos
comentários sobre a fama de raparigueiro do marido. Resignada, Duda aguentava
tudo calada e ele, vivia solto na data para o exercício de sua luxúria ao bel
prazer. Acho que por isso, contrariada no seu silêncio, no final de 1961
Gertrudes morreu repentinamente.
Manoel Martins viveu com Duda por longos 32 anos. Viúvo, já
aos 69 anos de idade, resolveu casar de novo e partiu para a caçada. Para
tanto, determinou a si mesmo algumas exigências: a moça não poderia ser maior
de 35 anos e tinha de ser, necessariamente, branca e sem filhos. Em que pese
suas exigências dificultarem a possibilidade de encontrar a parelha desejável,
o velho, sortudo, numa de suas idas a São José do Egito, deu de cara com um
acampamento de ciganos onde comercializavam cavalos e algumas cabeças de gado.
Apeou de sua montaria e foi logo cuidando de examinar os animais que estavam à
venda.
Em meio às negociações com os “ganjões”, Manoel vislumbrou
uma moça de pele clara e rosto bonito, com um vestido longo, descalça e com um
grande laço de fita nos cabelos. Ela estava sentada num tamborete a descascar
verduras sobre uma mesa de um dos barracos daquele acampamento. Aproximou-se e,
enxerido que era, foi logo cumprimentando a jovem: “Bom dia moça, como vai a
senhora?” A jovem cigana levantou a cabeça e, sem titubear, respondeu: “Optchá!
Como vai o senhor?” (“optchá” é uma palavra da língua cigana “romani” que significa “salve!”) “Vou
bem, meu nome é Manoel” disse o velho. “E o meu é Cármen”, emendou a moça.
“Você é cigana?” Perguntou Manoel. “Pelo visto...” Respondeu Cármen.
Animado com a apresentação, o velho foi logo sentando num
banco que havia ao lado da cigana. “Quantos anos você têm”, inquiriu Martins,
ao que recebeu como resposta: “Vinte e sete. E o senhor, tem quantos anos?“ “Ora
minha filha, idade não é documento; o que vale mesmo é a capacidade do homem”.
Com ar de assustada, a moça disse: “O que o senhor quer dizer com isso?” “Nada
não, só que estou em forma” respondeu o velho. A cigana riu e, de forma sutil e
enigmática, soltou: “Veremos...” Depois disso, levantou-se e adentrou à tenda
deixando o homem sozinho. A essa altura, Manoel Martins já estava inhêta.
Instantes depois Cármen retornou trazendo às mãos uma caneca
de louça que ofereceu ao velho: “Quer um chá?” “Aceito” respondeu o homem.
Depois do primeiro gole Manoel perguntou à jovem: “Você é casada?” “Solteira”
respondeu Cármen. Manoel Martins riu e comentou baixinho: “Menos mal”,
levantou-se do tamborete, fez menção de se retirar, mas antes perguntou à moça:
“Posso voltar aqui?” Ao que ela respondeu: “Quantas vezes quiser”. O velho saiu
animado e pensando; “Acho que encontrei o que eu queria...”
Se dirigindo à feira do gado, Martins entreteve-se negociando
cavalos e bois, mas a cigana não lhe saía do pensamento. Em busca de melhores
informações perguntou a um rapaz – um mancebo bonito, moreno, com
características indígenas e que cuidava dos animais - se ele conhecia Cármen.
Obtida resposta positiva, o velho cobriu o jovem cavalariço de perguntas: de
quem era filha, o que fazia, qual o comportamento dela, etc. O moço respondeu
tudo, sempre dourando a pílula. Martins, satisfeito com as referências, Começou
a arquitetar um plano para voltar à barraca da moça e encetar uma conversa mais
produtiva.
Nesse ínterim, o cavalariço, que gozava da confiança da mãe
de Cármen e que era frequentador da barraca onde as duas moravam, já havia
informado à velha sobre o interesse do desconhecido por sua filha. Cármen era
filha de Esmeralda, uma velha viúva muito sabida – o que não é estranho em se
tratando de ciganos – que viu aí uma oportunidade de encaminhar a filha para um
futuro promissor. A arataca estava armada. Nem precisou Manoel Martins se articular
para uma próxima visita. No dia seguinte, o jovem rapaz de olhos puxados com
quem ele havia conversado no dia anterior, trouxe-lhe um recado de Cármen o
convidando para almoçar na barraca de sua mãe.
Martins não se fez de rogado e logo se preparou para o
repasto. Foi numa das lojas de tecido da cidade, comprou um corte de pano
colorido, mandou embrulhar para presente e partiu para o encontro que
acreditava, iria mudar sua vida. Lá chegando já estava tudo pronto: mesa posta,
Cármen e a velha, bem vestidas e, ambas com o sorriso no canto da boca. Todo
enfatiotado, o homem cumprimentou-as com reverência, tirou o chapéu, entregou o
presente e pediu licença para sentar. Daí para a frente, a conversa rolou
animada. Tão animada, que Manoel, numa precipitação compreensível, pediu a mão
da jovem cigana em casamento.
Sem titubear, Esmeralda, concedeu a mão da filha, mas exigiu
imediata marcação da data para o casamento - a essa altura, mãe e filha já
sabiam que Manoel Martins era viúvo e homem de posses – ao que o velho
concordou. Voltou para Princesa, comunicou a alguns amigos que ia-se casar e
logo retornou a São José do Egito para rever a noiva e providenciar os acertos
para o enlace matrimonial. Martins estava serelepe, parecia um adolescente,
tudo fazia para agradar à jovem noiva e esta, toda solícita, se derramava em
agrados com o velho.
O noivo, que já era adepto de cuidados vários para a manutenção
de sua virilidade em ordem, com vistas ao iminente casamento, exacerbou esses
cuidados. Além de fazer uso das simpatias que lhes recomendavam quando tomava,
frequentemente, chás de alecrim de serrote e lavava as partes com gosma de
quiabo, Manoel resolveu fazer uma consulta ao médico doutor Severiano Diniz em
busca de orientação mais efetiva para uma performance sexual condizente com as
obrigações que, em breve, lhes seriam incumbidas.
A essa altura, na rua de Princesa, todo mundo já sabia que
Manoel Martins havia noivado em São José do Egito e que ia-se casar com uma
cigana. Era o assunto da cidade. Doutor Severiano, que era amigo de Martins,
também tinha conhecimento dessa história. Numa manhã de sábado o velho se dirigiu
ao consultório de Severiano. Chegando lá, deu o nome e ficou, na sala de
espera, aguardando para ser atendido. De repente, entrou um homem de seus
trinta e poucos anos, gritando de dor. Foi tanto o espalhafato, que o médico
saiu de seu consultório e foi logo perguntando: “Que diabo é isso! Que
escândalo é esse?!
O paciente escandaloso intercedeu: “Me acuda doutor que eu
não aguento mais de tanta dor...” “Mas, do que se trata?” Perguntou Severiano. Ali
mesmo, o homem abaixou as calças e mostrou seu pênis ereto e intumescido. O
médico acocorou-se para melhor observar o membro do rapaz e, de repente, disse
à enfermeira que estava ao lado - com os cinco dedos da mão (entreabertos)
cobrindo o rosto: “Marlene, me traga uma pinça!” Atento, Manoel Martins
observava todo o movimento.
Chegada a enfermeira com a pinça, doutor Severiano pegou o
artefato e retirou do pé do pênis do homem o que ele [o doutor], chamou de
besourinho: “É este besourinho que está provocando essa ereção constante do seu
pênis. Isso se chama priapismo. Pode ir pra casa agora que você, logo, logo,
ficará bom”. Quando o médico se dirigia à lixeira para dar destino ao
“besourinho”, o velho Martins pulou da cadeira aonde estava e, já desabotoando
as calças, gritou: “Jogue no mato não, doutor! Bote esse ‘bichim’ aqui!” Rindo,
o doutor Severiano virou-se para o amigo e disse: “Estou brincando, Mané, isso
é uma doença séria que não tem nada a ver com besouro. Vamos à consulta!”
No consultório, ainda envergonhado pelo vexame, o velho
relatou ao médico o que este já sabia: que ia-se casar e que precisava de ajuda
para a empreitada que se aproximava. Entendendo do que se tratava, o doutor
receitou o que havia de mais moderno nas farmácias daquela época: uma injeção,
fabricada no Japão, chamada “tekateston”, que deveria ser ministrada no
paciente, uma vez por mês de forma intramuscular. Custava uma fortuna, mas para
Manoel Martins isso era fichinha uma vez que, para ele, dinheiro não era
problema e, os fins, justificavam os meios. Em que pese o entrevero do “besouro
salvador”, Manoel Martins saiu satisfeito do consultório.
Um mês após a consulta, no dia 8 de abril de 1962, aconteceu
o casamento de Manoel com Cármen. A cerimônia foi realizada ao ar livre, à
noite, sob um céu estrelado, como manda a tradição cigana, embalado por muita
música e muita dança. Finda a festa, o casal de nubentes partiu para a
lua-de-mel em Princesa. Passaram ali uma semana e voltaram para São José do
Egito. Manoel deixou a jovem esposa na barraca de sua mãe Esmeralda e, com a promessa
de retornar em breve, partiu de volta para Princesa em busca de resolver seus
vários negócios.
Passados dois meses, o velho recebeu da jovem esposa a
notícia de que ela estava grávida. Inicialmente, ficou feliz, mas
imediatamente, lembrou-se de um antigo diagnóstico de um médico de Caruaru de
que ele [Manoel] era estéril. “Será que foi o efeito das injeções do Japão?”
Pensou o velho. Apaixonado, Manoel desvencilhou-se de pensamentos negativos e,
demonstrando satisfação com a notícia, tocou a vida para frente, afinal, ia ter
o herdeiro que sempre desejou.
Sete meses após a notícia da gravidez, Cármen deu à luz um
menino. Em viagem de trabalho, Manoel Martins só conheceu o rebento três meses
após o parto. Chegado na barraca da sogra, quis logo ver a criança. Qual não
foi a decepção do velho: o menino era moreno e tinha os olhos apertados tal
qual um japonês. Ante o espanto do genro, Esmeralda foi logo dizendo: “Esse
menino demorou a nascer, por isso ficou escurinho desse jeito!” Disso, o homem
não ficou muito convencido. No entanto, quanto aos olhos apertados da criança,
acreditou que fosse mesmo efeito das injeções japonesas. Já para os que viviam
no acampamento, atribuíam essa característica do filho de Cármen ao cavalariço.
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