ODE

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Domingo eu conto

Por Domingos Sávio Maximiano Roberto

O Discurso do ateu

O muçulmano Hassan, a judia Judith, o pastor Levi, o padre Amâncio e o ateu Paulo resolveram se afastar - durante os três dias de Carnaval – de suas atividades religiosas e habitar um resort no litoral alagoano pertinho de Maceió. Ali estariam reunidos, numa espécie de retiro para, num seminário ecumênico, discutirem, profundamente, sobre as três principais religiões monoteístas que dominam o mundo: Cristianismo, Islamismo e Judaísmo. Em contraponto, convidaram um ateu que, no papel de “advogado do diabo” contrabalançaria as discussões.

Hassan, um homem de 48 anos de idade, moreno, alto e de cabelos e olhos negros, versado em profundidade sobre o Alcorão, principalmente no que concerne à ética, à moral e demais preceitos do islamismo. Judith, uma ruiva formosa, de baixa estatura, olhos azuis e seus 37 anos de idade, especialista no tocante aos cinco primeiros livros do pentateuco: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. O pastor Levi, evangélico pentecostal, um senhor negro de mais de 60 anos, gordo e de barba grisalha, vestido com elegância e doutor em Evangelhos pela Baylor University do Texas, EUA. O padre Amâncio, jesuíta, um homem branco de 51 anos de idade, vestido num terno sóbrio complementado por um branquíssimo clergyman; um respeitado intelectual católico especialista em Sagradas Escrituras pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Por fim, o ateu Paulo, um homem pardo de estatura média, cabelos e barba compridos, com cerca de 40 anos, desalinhado no vestir, um livre pensador, autodidata e convicto de suas não crenças.   

Hospedados em quartos separados se encontrariam nas refeições e na hora das reuniões, que aconteceriam três vezes ao dia. A principal delas ocorreria à noite quando fariam um balanço das discussões diurnas. No primeiro dia, de manhã, o encontro serviu para que, cada um, se apresentasse diante dos colegas religiosos e do ateu. Todos brasileiros, informaram de onde vinham e sobre suas atividades junto às suas respectivas comunidades, crenças e práticas sociais relacionadas com os preceitos do que consideravam sagrado. Hassan, o islamita, vinha do Rio Grande do Sul; Judith era oriunda do Paraná; o pentecostalista Levi era da Bahia; o padre Amâncio de João Pessoa na Paraíba e o ateu, Paulo, de Princesa.

Sobre o propósito desse encontro, o evangélico Levi, na qualidade de decano do grupo, no primeiro dia, à tarde, tomou a palavra inicial: “Aqui estamos para uma discussão civilizada sem digressão do assunto principal que é a explicação para nós mesmos sobre a manifestação de Deus no âmbito das três principais religiões monoteístas professadas no mundo”. Interrompendo o pastor, Paulo, o ateu, atalhou: “Ou sobre a ausência dessa manifestação!” Em face do que considerou um deboche, o padre Amâncio interveio, enfático: “Tenho certeza de que, o negacionismo da Divindade reforça ainda mais a certeza das três características de Deus: Onipotência, Onisciência e Onipresença”. “Mas não podemos ter esses três pilares das religiões, Cristã, Judaica e Islâmica como premissa essencial provadora da existência de um Ser superior porque não são elas a essência, mas sim a consequência Dessa divindade e, se é uma consequência Dela, portanto, por demais subjetivo”, observou o ateu. De forma provocadora, o padre emendou citando uma quadra de Provérbios 15:3: “Os olhos do Senhor estão em toda parte observando atentamente os maus e os bons”.

Vendo a discussão se polarizar entre os cristãos e o agnóstico, Hassan, o islamita, entrou na briga: “A onipotência, onisciência e onipresença de Alá estão intrínsecas na Sua essência divina. Essas características exigem dos fiéis: oração diária, profissão de fé, esmolas, jejum e peregrinação a Meca. No Islã, todos são iguais perante o Único e Misericordioso”. O ateu questionou voraz: “Iguais? Sua religião é preconceituosa e discriminatória. No seu credo, as mulheres são seres considerados inferiores! Onde está a igualdade?” Hassan rebateu: “Não há nada desigual nesse gênero! Na nossa religião são atribuídas mais responsabilidades aos homens do que às mulheres e, por isso, eles têm a obrigação, o dever, de protegê-las”. Calada até então, Judith, a judia, se manifestou: “Não estamos aqui para avaliar costumes, mas sim para examinarmo-nos quanto à nossa capacidade de explicar Deus no âmbito dos vários credos professados pela humanidade.

Em face da observação da judia, Paulo voltou à carga: “Como se imiscues em analisar costumes? Jogas o lixo para debaixo do tapete? Não é, a tua religião, o judaísmo, uma das mais preconceituosas e supersticiosas de todas? Teu credo preceitua: Justiça e Ética, mas tem um Deus que deve ser comprometido com um único povo: o judeu! No teu credo é proibido comer carne de animais que tenham as patas fendidas e também frutos do mar; o porco é um animal amaldiçoado; à mesa, não se pode misturar carnes com leite, isso não é pura superstição? Judeus são obrigados a amar, temer e louvar ao Deus chamado Javé - nome que, por respeito, vocês não podem pronunciar. Faço minhas as palavras do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900): ‘Como posso acreditar num Deus a quem tenho de louvar a cada instante?’ As religiões monoteístas são todas iguais em seus princípios, práticas e superstições”.

Essa longa fala do ateu balançou as estruturas de todos os líderes religiosos que participavam daquela mesa redonda. Ante a balbúrdia de protestos, o decano Levi pôs ordem na reunião indicando que Judith tinha a palavra para responder às assertivas de Paulo. A judia: “São tradições da religião monoteísta mais antiga do mundo; são conceitos e costumes para identificar os escolhidos que devem cumprir a missão de converter os ímpios. Nós, judeus, temos uma missão no mundo que é a de louvar o Senhor em intercessão pela conversão dos que não creem. Quanto ao louvor, o fazemos porque o Poderoso criou todas as coisas e nós devemos louvá-Lo por isso”. Encerrou Judith. Antes que alguém tomasse a palavra, o padre Amâncio declarou, sobre o tema da Criação: “Deus criou o Céu e a Terra e, tudo o que existe, deve estar serviço Dele. Nós estamos aqui de passagem, num estágio de aperfeiçoamento em busca do merecimento da glória celestial. Aliás, Ele criou o homem e a mulher à sua semelhança e, ambos, são iguais perante Sua divindade”. Sorrindo, Paulo observou: “Padre, não sabes que, no Velho Testamento, a mulher é considerada um ser nocivo? Em Eclesiastes 7:26-28, está escrito: ‘A mulher é mais amarga que a morte’”. Padre Amâncio calou.

O ateu continuou: “Não posso concordar com o reverendo”. Dizendo isso, Paulo pôs-se de pé e continuou: “Primeiro, quanto à teoria do criacionismo, já sabem todos que isso é uma balela. Já em 1859, o cientista britânico Charles Darwin (1809-1882) lançou o livro ‘A Origem das Espécies’ redefinindo para sempre a ciência moderna. Segundo, tenho dúvidas quanto à onipotência desses deuses em que vocês acreditam. Lembremos que a versatilidade, marca registrada dessa Divindade, vem fazendo com que Ela se adapte, ao longo dos séculos, aos interesses e às vontades dos que A seguem; senão vejamos: de conformidade com o Velho Testamento, o Deus judeu de antigamente punia com força os que O desobedeciam, era Vingador! Em nome desse mesmo Deus – já na forma de filho do Homem, Jesus Cristo -, a Igreja Católica, através da “Santa Inquisição”, usando a forja, o torniquete, o pêndulo, e o cavalete, torturou e matou os que não rezavam no seu catecismo, principalmente judeus; prática também seguida pelos protestantes.” E continuou enfático: “Se retornasse, o Filho do Homem, não passaria sequer nas calçadas, fossem das suntuosas catedrais católicas; das pequenas igrejas de crentes de ponta de rua ou até dos portentosos templos de Edir Macedo que mais parecem a Casa da Moeda. Por que temos de ser tementes a esse Deus? Por que louvá-Lo, se ele é onipotente e onisciente? Ele sabe de todas as nossas necessidades, lê os nossos pensamentos e sabe das nossas intenções. Os Cruzados trucidaram judeus na chamada Terra Santa. Todas essas práticas violentas, perpetradas em nome de Deus, tinham o condão de confiscar os bens dos ‘infiéis’, o que construiu o esplêndido patrimônio da igreja de Roma! Em tempos recentes, o Papa João Paulo II, por ocasião do Jubileu do Segundo Milênio, pediu perdão pelos crimes das Cruzadas e da Santa Inquisição e aproveitou para abolir o Purgatório e o Inferno. Mais recentemente, o Papa Francisco abençoou as uniões homoafetivas, o que era um verdadeiro tabu para o Vaticano. O que houve? O Todo Poderoso mudou, reciclou-Se?”

Indignado, Levi, que até então posava de apaziguador, partiu como um leão em defesa de sua fé, mas deslizou num ataque velado aos católicos: “Deus não mudou, Ele é o mesmo de sempre. O pecado está naqueles que se prestam a usar o nome do Criador para manter suas tradições e suas pompas”. Sem pedir a palavra, o padre interrompeu o pastor e disparou: “Falas da pompa da Igreja, mas te esqueces da prosperidade dos pastores, bispos, apóstolos e missionários de tua Igreja. A fortuna de Edir Macedo, que orça em torno de R$ 1,9 bilhão; a de Valdemiro Santiago que beira os R$ 500 milhões; a de Silas Malafaia que passa de R$ 300 milhões, o que me dizes disso? Não sabes que tudo isso vem sendo construído com a extorsão dos pobres coitados que são vítimas da ‘sacolinha’, dos envelopes, dos boletos e, agora, do pix?” O tempo fechou ao ponto de Hassan, o muçulmano tomar a palavra e pedir a todos que se contivessem nas acusações, dizendo: “Não é este o local apropriado para a lavação de roupa suja! Violência verbal não leva a nada, contenham-se!” Em face dessa intervenção do islamita, Paulo retornou à carga: “Violência? Aqui não há violência alguma. Tudo isso é fruto das provocações feitas por vocês mesmos quando estão retirando o lixo de debaixo do tapete!”

Irritado com essa observação, Hassan respondeu: “Na verdade, Paulo, é você o pomo de toda essa discórdia! Você desvirtuou o nosso encontro que se propunha discutir a fé em suas diversas nuances numa tentativa de convergir para o consenso em prol de uma união de forças que pudesse nos permitir uma convivência pacífica em nome Daquele que é o Provedor de tudo. Com suas intervenções provocativas você, não somente desvirtuou como implantou a discórdia, portanto, eu recomendo: cale-se!” “Não posso me calar diante das evidentes idiossincrasias desse grupo de religiosos que se arvoram de donos da verdade espiritual de dois terços da humanidade”, respondeu o ateu. E continuou: “Ademais, falando em violência, é o teu credo o que mais persegue e mata em nome do teu Deus a quem chamam de Alá. Quem não lembra do Talibã e da destruição das torres gêmeas do World Trade Center? Quem não sabe da sentença de morte exarada contra o escritor Salman Rushdie? E pior, os fiéis muçulmanos que matam e aterrorizam em nome de Alá, recebem como prêmio, cada um, 7 virgens para desfrutar na morada celeste! São todos iguais, o que reina é a hipocrisia!” 

Ao descambar para barulhento tumulto, a reunião perdeu o rumo se transformando numa verdadeira “Torre de Babel” quando ninguém se entendia, todos se acusavam mutuamente e nada convergia para um consenso. Em meio à confusão, como que para tocar mais fogo na fogueira, o ateu olhou para o padre e o pastor, apontou para um crucifixo que estava dependurado numa das paredes da sala e proferiu: “Tudo isso acontece porque vocês sempre O mantiveram pregado numa cruz. Soltem-No! Se assim o fizerem Ele voltará com o chicote que usou para expulsar os vendilhões do templo de Jerusalém”. Olhando para Judith, disparou: “Quanto aos judeus, resta-lhes cumprir o que mandam as tábuas da lei mosaica e o que está contido na Torá”. Virando-se para Hassan, Paulo continuou: “Aos muçulmanos, professos da religião mais retrógrada e mais violenta do mundo, resta-lhes esquecer o terror e cultivar o amor contido no Alcorão escrito por Maomé”. Já a nós, pobres ateus, resta conformarmo-nos com o nosso isolamento, mas confortados porque desobrigados da prática da hipocrisia. Em face dessas lições proferidas pelo ateu, deram-se todos por insatisfeitos e a reunião, que duraria três dias – como um aborto – acabou-se no primeiro dia. O eloquente discurso do ateu calou fundo na alma dos crentes.



 

Nenhum comentário:

Postar um comentário