Em um desses passeios, a jovem se deparou com uma filmagem que estava sendo realizada e ficou olhando a cena maravilhada. Sua presença despertou a atenção do jovem diretor do filme,
que se aproximou e perguntou se ela não queria participar da película. A moça concordou, mas disse que somente estaria disponível nos finais de semana. Ficou de aparecer no set na semana seguinte. No dia combinado, a jovem chegou ao local da filmagem trazendo um violão. O diretor, surpreso, perguntou por que ela havido trazido o instrumento. A moça disse que soube que ele gostava de música e passou a cantar — acompanhada do violão — uma música do folclore brasileiro.
Foi assim que a jovem de nome Vanja apareceu no filme, no papel da cigana Moema, tocando violão e cantando “Meu limão, meu limoeiro”, uma conhecida canção popular do Brasil. Aquele era o primeiro filme do jovem diretor de nome Federico Fellini, que depois viria a se tornar um dos mais importantes cineastas de todos os tempos. O filme “Luci del Varietá” (no Brasil: “Mulheres e Luzes”) foi conjuntamente produzido e dirigido pelo iniciante Fellini e pelo já experiente Alberto Lattuada. Anos depois, Fellini, falando sobre o filme, diria que tanto ele como Lattuada se sentiam orgulhosos com aquela realização. Foi assim, em alto estilo, fruto de uma casualidade, que a carioca Vanja Orico, filha do político, escritor e acadêmico paraense Osvaldo Orico, estreou no cinema, como atriz e cantora, atividades que ela exerceria pelo resto da sua vida.
Como consequência do filme “Luci del Varietá”, Vanja Orico foi convidada a fazer, na Itália, a sua primeira gravação em um disco de 78rpm (com uma música de cada lado) com “Meu limão, meu limoeiro” e “Coplas” (uma canção que ela própria compôs aproveitando um tema do poeta espanhol Federico Garcia Lorca). A partir de então, Vanja começou a participar de programas no rádio e na televisão italiana e fazer apresentações em Paris, em Portugal e na Bélgica. Por aquela época, ela veio ao Brasil para recitais no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, que tiveram a participação do respeitado pianista e compositor brasileiro Francisco Mignone.
Com a repercussão do seu trabalho no filme de Fellini e Lattuada, Vanja Orico foi escolhida para um dos papéis principais do filme “O Cangaceiro”, do diretor Lima Barreto. “O Cangaceiro” foi o primeiro sucesso internacional do cinema brasileiro. Levado ao Festival de Cinema de Cannes, em 1953, “O Cangaceiro” obteve o Prêmio de Melhor Filme de Aventura e recebeu elogios do presidente do júri,
o cineasta e poeta Jean Cocteau. A trilha sonora da película também recebeu uma menção especial no festival de Cannes. “O Cangaceiro” tem nos seus créditos a escritora Rachel de Queiroz como autora dos diálogos, o pintor Carybé na cenografia e o compositor Adoniram Barbosa como ator.
“O Cangaceiro” obteve êxito mundial. Ficou cinco anos em cartaz na França e foi exibido em mais de 80 países. Segundo depoimento de Vanja Orico, “O Cangaceiro” teria dado à distribuidora norte-americana Columbia um faturamento muito maior do que o que fora conseguido pelo filme "A Ponte Do Rio Kwai", uma das películas de maior bilheteria naqueles anos. Estima-se em 50 milhões de dólares a arrecadação internacional do filme, que ficou, integralmente, com a empresa norte-americana. Lima Barreto (o diretor da película) morreu, em 1982, pobre e esquecido, em um asilo de São Paulo.
O disco com as músicas de “O Cangaceiro”, lançado na França, com destaque para a interpretação de Vanja Orico para a música “Mulher Rendeira” obteve grande vendagem e alavancou a carreira dela como cantora. “Mulher Rendeira” é uma toada popular adaptada por Alfredo Ricardo do Nascimento, paraibano de Cajazeiras, que adotou o nome artístico de Zé do Norte. A música (na trilha do filme também interpretada pelo conjunto vocal Demônios da Garoa) é um tema recolhido nos sertões nordestinos, de origem incerta, da mesma forma que a canção Asa Branca, que foi adaptada por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, embora alguns atribuam a autoria de “Mulher Rendeira” ao cangaceiro Lampião.
“Mulher Rendeira” se tornou uma das músicas brasileiras mais conhecidas em todo o mundo, com regravações insólitas, como a de The Shadows, banda instrumental inglesa de grande sucesso nos anos 1960 (a dos hits Apache e Man of Mistery ). No disco com as músicas do filme “O Cangaceiro”, Vanja cantava, além de “Mulher Rendeira”, a canção “Sodade, meu bem Sodade”, de Zé do Norte. O paraibano Zé do Norte interpretava outras duas músicas de sua autoria, “Meu Pinhão” e “Lua Bonita”.
Para divulgação do filme, a distribuidora Columbia programou apresentações de Vanja Orico em várias partes do mundo que incluíram, mesmo em pleno auge da Guerra Fria, a União Soviética e países do então bloco socialista. Vanja Orico se tornou, na época, a artista brasileira mais conhecida internacionalmente, situação só comparável àquela alcançada, antes, por Carmem Miranda. Após “O Cangaceiro”, Vanja participou de filmes na Espanha e na Alemanha e, paralelamente, desenvolveu a sua carreira como cantora fazendo shows e gravando discos na Europa e no Brasil.
O sucesso de “O Cangaceiro” fez com que se iniciasse no cinema brasileiro o que se denominou o “Ciclo do Cangaço”, uma espécie de western tupiniquim, um “Nordestern”, com filmes utilizando temáticas baseadas no banditismo que assolou, na primeira metade do século passado, os sertões nordestinos.
Vanja Orico atuou, além de “O Cangaceiro”, em mais três filmes nessa linha, “Lampião, rei do cangaço” (1965), “Cangaceiros de Lampião” (1967) e “Jesuíno Brilhante, o cangaceiro” (1972). Os quatro filmes de temática de cangaço que tiveram a participação de Vanja Orico fizeram com que ela fosse chamada a Musa do Cangaço.
A carreira internacional que Vanja Orico desenvolveu a obrigava a constantes viagens para o exterior, o que fez com que o jornalista Sergio Porto (Stanislaw Ponte Preta) criasse nas suas crônicas a expressão “Vanja vai, Vanja vem”, significando tempo decorrido, locução que foi usada como título de um espetáculo que Vanja fez, no Rio de Janeiro, com o ator Grande Otelo.
Vanja Orico sempre adotou um rigoroso critério na escolha das canções que interpretava. Poucas cantoras brasileiras tiveram a qualidade do seu repertório. Nos seus primeiros discos (mesmo os gravados no exterior) alternavam-se músicas folclóricas com canções de compositores como Dorival Caymmi, Joubert de Carvalho e Luís Bonfá. Vanja foi uma das primeiras intérpretes a gravar a dupla Tom Jobim e Vinícius de Moraes, ainda na fase anterior à bossa-nova (“Eu não existo sem você”), e foi ela quem fez as primeiras gravações das músicas “Opinião” e “Acender As Velas”, do sambista Zé Kéti, que, depois, ficaram vinculadas ao nome da cantora Nara Leão.
O cuidado na escolha das canções que ia cantar e gravar permaneceu até os últimos discos que foram feitos por Vanja Orico, como, por exemplo, o que gravou com a participação do Quinteto Violado, em que foram incluídas músicas de Dorival Caymmi, uma pouco conhecida canção de Geraldo Vandré (“Chaquito”), Capiba, João do Vale, Carlos Lira e Luis Bonfá. Atualmente, a discografia de Vanja Orico só é encontrável em sites e blogs. A plataforma streaming Spotify apenas disponibiliza um disco com seleção das suas primeiras gravações e um EP com quatro músicas da trilha do filme “L'ombre sous la mer” (com a atriz Sophia Loren).
Um episódio marcou a vida de Vanja Orico e fez com que ela tivesse que deixar, por algum tempo, o Brasil. Em outubro de 1968, uma manifestação de estudantes que estava sendo realizada na frente do Hospital das Clínicas, no Rio de Janeiro, foi reprimida violentamente pela polícia, com um saldo trágico: a morte do acadêmico de medicina Luís Carlos da Cruz, de 21 anos, ferimentos à bala em outros seis estudantes e a invasão do hospital pelos policiais, causando pânico entre os pacientes.
No dia seguinte, um grande cortejo, com a participação de estudantes e artistas, dirigia-se ao cemitério do Caju, para o sepultamento do estudante assassinado, quando foi dispersado pela polícia com disparos de metralhadora, resultando em mais dois mortos. Para evitar um massacre, Vanja Orico, que participava da passeata, se colocou à frente dos manifestantes, ajoelhou-se no meio da rua e gritou para os militares: “não atirem, somos todos brasileiros”. A atriz foi retirada, à força, do local, sob golpes de cassetetes e levada presa. Como Vanja Orico era um nome conhecido internacionalmente, as fotos estampando a brutalidade dos militares contra ela foram publicadas nos principais jornais do mundo. Três dias depois, ela foi solta.
Pouco tempo depois, a situação no País se agravaria. Em 13 de dezembro de 1968, o regime militar editaria o mais autoritário e ditatorial dos seus atos, o famigerado Ato Institucional nº 5. O Congresso Nacional e as Assembleias Legislativas estaduais foram fechados, mandatos parlamentares cassados, direitos civis foram suspensos, inclusive de três ministros do STF, foi extinto o habeas corpus para delitos políticos e estabelecida a censura nos rádios, jornais e televisões. Muitas pessoas foram presas, entre elas Carlos Lacerda, um dos principais líderes civis do golpe militar de 1964, o velho advogado e arraigado anticomunista Sobral Pinto, o ex-presidente Juscelino Kubitscheck (que chegara a votar no general Castelo Branco na sua eleição indireta para Presidente), escritores e artistas, como Gilberto Gil e Caetano Veloso. Começava a Ditadura Escancarada, conforme o jornalista Elio Gaspari denominou o período, em um título de um dos seus livros.
Em virtude da situação por que passava o País e da sua posição política, Vanja Orico resolveu deixar o Brasil, fixando residência em Paris. Depois de passar algum tempo no exterior, retornaria ao Rio de Janeiro, retomando a sua carreira de atriz e cantora, mas sem o destaque que, anteriormente, alcançara. Participou de filmes, fez roteiros para outros, e dirigiu uma película.
Como cantora, nas suas apresentações e nos discos que gravou na sua volta para o Brasil, Vanja Orico manteve sempre uma alta qualidade na escolha do seu repertório, sem nunca fazer concessões comerciais. Pela grande projeção que teve, como atriz, cantora e cidadã, durante pelo menos duas décadas, é inconcebível que o seu nome seja omitido nos livros que tratam da história da música popular brasileira na segunda metade do século passado.
A Musa do Cangaço, como ficou conhecida, morreu no Rio de Janeiro, em 2015, aos 83 anos.
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