ODE

domingo, 10 de dezembro de 2023

Domingo eu conto

Por Domingos Sávio Maximiano Roberto

A Freira e o quinto Pecado Capital

A cidade era Cajazeiras, na Paraíba e o ano era 1972. Ali, existia um Convento de Freiras da Ordem das Dorotéias – Congregação fundada em 1834 por Santa Paula Frassinetti. Vizinho ao Convento, num prédio simples, funcionava uma escola para moças, que era administrada pelas irmãs Dorotéias. A Escola era particular e tocada por oito freiras, sob a direção da madre superiora, uma italiana, chamada sóror Benigna Matteo. Dentre essas religiosas estava a sóror Helena a quem suas confreiras chamavam carinhosamente de “irmã Lena”, que era a Secretária Administrativa da Escola.

Irmã Helena, que tinha o nome civil de Adalzira Domiciano, era uma mulher de aproximadamente 35 anos de idade, morena clara, de baixa estatura e de relativa beleza. Olhando para a religiosa, apesar da pesada indumentária (o hábito), se observavam traços de um corpo sinuoso e ela, em constante alegria - mesmo no recatamento que sua condição exigia - se fazia muito simpática e comunicativa. No exercício da função de Secretária da Escola, a freira era muito eficiente e tratava a todos com extrema educação, presteza e respeito.

Malgrado ser aquela uma Escola só para moças, alguns jovens do sexo masculino frequentavam-na quando do acontecimento de jogos, gincanas, apresentações folclóricas ou atos religiosos. Essa mistura de gêneros foi a desgraça de irmã Helena. Elenildo Macena era um desses jovens que sempre compareciam aos eventos daquela Escola. Rapaz bonito, contava 18 anos de idade, alto, moreno, bem feito de corpo, inteligente e, porque não dizer, muito interesseiro. Embora com sobrenome nobre, Elenildo, que tinha o apelido de “Nildo”, era pobre. Filho de um fotógrafo lambe-lambe e, no afã de “ser gente”, vivia à espreita de uma oportunidade para adentrar ao concerto dos ricos, dos chamados “bem de vida”.

Num desses eventos, Nildo conheceu a sóror Helena e logo encetaram amizade. Tanto ele quanto ela gostavam de ler e de ouvir música e foi este, o canal inicial, para uma aproximação mais efetiva. Começaram trocando livros e discos e, por conta disso, o rapaz começou a comparecer com frequência à Secretaria da Escola. Ali, discutiam assuntos literários e ouviam, numa velha vitrola, a execução de músicas em discos de vinil. O tempo foi passando – para eles muito rapidamente – e a amizade foi aumentando. Logo, Elenildo, interessou-se por aprender datilografia e, a freira, muito solícita, disponibilizou-se em ensinar-lhe.

Na sala em que funcionava a Secretaria, além de uma grande estante com vários livros e do móvel que acondicionava a velha vitrola, existiam dois birôs, algumas cadeiras, fichários e uma pequena mesa que servia de suporte para uma máquina de escrever. No centro da parede frontal à porta de entrada, dois quadros emoldurados: um com o retrato da santa Paula Frassinetti e, outro, retratando o Sagrado Coração de Jesus. Já demonstrando alguma intimidade com o jovem mancebo, irmã Helena – que o chamava pelo apelido, Nildo – começou a ensinar ao rapaz o ofício de bater máquina. Para tanto, a pequenina freira, debruçava-se sobre os ombros de Nildo, sentado a uma cadeira, e, no mais das vezes, estendia suas próprias mãos em auxílio no dedilhar das teclas.

Já havia um achegamento emocional entre os dois. No entanto, essa aproximação física foi o estopim para a deflagração de perigoso sentimento, acendeu-se uma fogueira que culminou num namoro proibido o que provocaria, mais tarde, grande escândalo na cidade de Cajazeiras. Aulas intermináveis eram ministradas pela religiosa e, Nildo, nada aprendia. Porém, nesse roçar de corpos, acendeu-se a chama do desejo carnal. Quando sozinhos, na Secretaria, beijavam-se efusivamente e, no intervalo para o almoço, aproveitavam o deserto de pessoas para a consumação de abrasivos atos sexuais. Irmã Helena estava completamente apaixonada por Elenildo, e este, a lhe corresponder na virilidade que cabia a um jovem recém-saído da adolescência. Estavam juntas aí, a fome com a vontade de comer.

Cega de paixão, a freirinha, não se deu conta de que já pairavam suspeitas quanto a essa estranha “amizade” entre uma religiosa e um jovem rapaz, o que a fez incapaz de perceber o que já se evidenciava aos olhos dos que frequentavam o mesmo ambiente. Em face disso, sem poder dizer se foi proposital, certo dia, uma das professoras da Escola, dona Nilda Lulú, durante o intervalo do primeiro horário, resolveu chegar mais cedo e dirigiu-se à Secretaria a fim de pegar uma caderneta. Adentrou ao recinto sem bater na porta e qual não foi sua surpresa ao deparar-se com a irmã Helena e Nildo abraçados, beijando-se na boca. O escândalo estava feito.

Diante dessa cena, dona Nilda, horrorizada com o quadro, soltou um grito: “Meu Deus do Céu! O que é isso?!” Mais do que depressa a sóror se recompôs colocando de volta, o véu à cabeça e foi logo rogando, aflita: “Nilda, pelo amor de Deus, você não viu nada...” Implorou a desventurada freirinha. “Vi sim, irmã, vi sim! E vou comunicar à madre superiora. Isso é uma pouca vergonha! Onde já se viu uma freira dependurada nos beiços de um rapaz? E olha o estado dele – apontando para as partes baixas do jovem - isso é um escândalo!” Dito isso, a professora Nilda retirou-se do recinto.

Aos prantos, a freira, recomendou a Nildo que fosse embora dali e a deixasse entregue à própria sorte. Atordoado, mas sem demonstrar qualquer reação em apoio à desvalida amante, Elenildo escapuliu. Em seguida, adentraram à sala a madre Benigna Matteo acompanhada de mais duas irmãs e da professora Nilda. De forma peremptória, a superiora foi logo arguindo: “Helena, o que aconteceu aqui?” Ao que, chorando, completamente decaída e, de forma humilde, a desditosa religiosa respondeu: “Tudo e nada, madre. Eu já não sou mais nada e, como disse o Pai: Em suas mãos, eu entrego o meu espírito”. De um rompante, madre Benigna aproximou-se de irmã Helena e arrancou o véu que lhe cobria a cabeça, dizendo, aos gritos: “Arrumes tuas tralhas e sumas daqui! Não nos envergonhes mais! Tu não fazes mais parte da nossa irmandade. És a vergonha da nossa Congregação, rua!!!”

Naquele tempo era assim, nos conventos de freiras, era intolerável a luxúria. Se nos conventos e mosteiros onde habitavam padres e irmãos professos a concupiscência era tolerada quando os superiores, bispos e até o Papa, faziam vistas grossas – mesmo que essa prática fosse a sodomia -, nas Casas de Religiosas isso era inadmissível e punido com imediato desligamento da religiosa. Salvo no recôndito das clausuras, entre si, não podiam as irmãs cometerem o pecado da carne. Foi assim com a irmã Helena, sem chances sequer de pedir perdão quando vítima do desejo desenfreado sucumbiu ao pecado de amar e viu-se execrada de seu meio obrigada a sair, com uma mão na frente e outra atrás carregando, para sempre, essa vergonha de haver infringido o quinto pecado capital.

Depois desse escândalo, o que repercutiu negativamente por toda a cidade, a sóror deixou de ser Helena, voltou a ser Adalzira e foi embora de Cajazeiras em busca de sua família que residia em uma comunidade rural de Princesa, também na Paraíba. Elenildo, passou algum tempo em Cajazeiras, encetou namoro com uma moça da alta-roda da sociedade cajazeirense e, de novo, impedido de levar em frente seu intento de adentrar no meio dos ricos, resolveu evadir-se de sua terra e foi tentar a vida no Recife onde conseguiu formar-se médico e contrair matrimônio com uma famosa jornalista. Constituiu família e, hoje, aposentado, conta sua história aos netos. Adalzira, tal qual uma “Madalena arrependida”, após perder o hábito e o amor de Nildo, foi-se embora para o Rio Grande do Sul e dela, não tivemos mais notícias; desapareceu para séculos sem fim, amém. O pecado do amor fez somente uma vítima.



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