ODE

domingo, 26 de maio de 2024

Domingo eu conto

 

Por Domingos Sávio Maximiano Roberto

Mulheres destemidas

A “Guerra de Princesa” teve o condão de revelar comportamentos inusitados para aquela época, a exemplo de situações em que, algumas mulheres, tiveram a oportunidade de se revelarem destemidas diante de circunstâncias de extrema violência. Num tempo em que o protagonismo de quase tudo era reservado aos homens, enquanto que, às mulheres, cabia apenas as coisas que se atinham ao lar, três episódios revelam reações que transformaram, algumas senhoras, em verdadeiras heroínas pela participação, nas lutas, durante a Guerra de Princesa contra o governo do presidente (governador) da Paraíba, João Pessoa. Desde o início, até o fim do conflito, acontecimentos violentos, em circunstâncias perigosas, envolveram mulheres que, até então, pacíficas, se mostraram por demais corajosas em desafio às agressões advindas da polícia paraibana.

O primeiro episódio, ocorreu logo no início daquela cruenta rebeldia, quando da invasão da vila de Teixeira, pela polícia paraibana. Atendendo ordens expressas do presidente João Pessoa, o tenente Ascendino Feitosa, comandando cerca de 30 soldados, em deliberada intenção de ocupar Princesa, às vésperas das eleições de 1º de março de 1930, no entardecer do dia 28 de fevereiro, invadiu, de surpresa, a vila de Teixeira e, na esteira de estrepitoso tiroteio, prendeu e fez reféns um tio e duas tias do advogado, João Duarte Dantas: Manoel Dantas Vilar e as solteironas, dona Ernestina e dona Cota (que eram também tias do escritor Ariano Suassuna). Desarmados, os três, fizeram-se presa fácil para a polícia.

Além dessas prisões, a polícia atacou a casa do chefe político, Silveira Dantas, patriarca dessa importante família. A resistência do velho Silveira contou com a imprescindível ajuda de uma negrinha, chamada Maria José, a quem apelidavam de “Bezé” que, junto ao patriarca, abriu fogo contra os da polícia de João Pessoa. Quando não estava atirando, Bezé, mergulhava n’água o cano do rifle de seu patrão para esfriá-lo e permitir que o homem continuasse disparando contra a Força paraibana. Mesmo entendendo que a resistência seria inglória, Dantas continuava atirando. Naqueles meios, de forma debochada e ameaçadora, o tenente Ascendino Feitosa (inimigo figadal daquela família) instou Silveira Dantas a se entregar, gritando, do terreiro: “Se entrega, Silveira, se não, degolaremos tuas irmãs!”.

Recusando-se a tanto, o patriarca da família Dantas, foi necessária a interveniência do vigário da cidade, para que fosse evitada uma tragédia maior. Trouxeram o ex-delegado de Teixeira, tenente João Pereira, e fizeram um apelo a Silveira: ele se entregaria ao ex-delegado e não ao inimigo Ascendino e, assim, se evitaria o massacre de seus familiares. Silveira Dantas aceitou a proposta e entregou-se. Porém, foi covardemente traído. Quando o tiroteio cessou, o tenente Ascendino Feitosa, nem liberou Manoel Dantas nem as solteironas e, pôs as mãos em Silveira Dantas aprisionando-o, e encarcerou a todos.

Debochado, o tenente Ascendino, disse: “Quando a noite cair, vou sangrar e beber o sangue desses Dantas”. Ouvindo isso e, de forma altiva, dona Cota - mesmo na condição de prisioneira -, valentemente, respondeu: “Bebe, desgraçado! Bebe, que pela primeira vez em tua vida vais ter um bocado de sangue bom dentro dessas veias imundas!” Entretanto, tudo se arrefeceu com a chegada de 200 homens, em armas, enviados pelo coronel José Pereira, de Princesa, em socorro de seus amigos e correligionários. Cercada, a polícia de Ascendino, libertou os presos e debandou, em busca do povoado de Imaculada.

Outro episódio, que envolve mulheres, e que merece registro, durante uma das mais importantes batalhas da Guerra de Princesa, ocorreu quando da invasão da vila de Patos (atual Irerê), pela polícia paraibana, vinda do distrito de Alagoa Nova (atual Manaíra), em junho de 1930. Aproveitando da situação quando, a maioria dos homens daquele lugar, estava na luta em defesa do distrito de Tavares, a polícia de João Pessoa, invadiu o povoado de Patos e fez reféns, as esposas de Marcolino Pereira Diniz (Xanduzinha), de Sinhô Salviano (Alexandrina) e de Luiz do Triângulo (dona Mitonha), todos os três, importantes cabecilhas das hostes do coronel Zé Pereira. Feitas reféns, essas mulheres, mesmo subjugadas, não se deixaram intimidar nem demonstraram medo. Em face da ameaça de que, o tenente Nonato e o sargento Clementino Quelé, as usariam como escudos humanos para marchar, com a tropa composta por quarenta soldados, sobre Princesa, elas não esmoreceram e fizeram chegar mensagens aos seus maridos dizendo que não se intimidassem com isso e que, não deixassem de receber os “macacos” à bala!

Diante dessa situação, o coronel José Pereira formou um grupo de 100 homens, em armas, e mandou para Patos com o fito de libertar as mulheres e o povoado ocupado. Uma das ordens do coronel era a de que resgatassem as mulheres, “vivas ou mortas”, mas, libertassem o povoado e expulsassem a polícia dali. O comandante dessa empresa foi Marcolino Pereira Diniz (O Caboclo Marcolino) que, em pouco mais de 18 horas de cerrado tiroteio, desbaratou a polícia, acantonada no casarão do major Floro, e libertou o povoado de Patos. Morreram dois homens de Zé Pereira e, mais de 20 soldados. Os praças que escaparam, escafederam-se embrenhados mata-a-dentro nas encostas da Serra da Baixa Verde. As três corajosas mulheres, libertadas, não sofreram nenhum dano pela soldadesca.

O terceiro episódio, com protagonismo feminino é, talvez, o mais emblemático de todos. Este, envolve uma jovem senhora de nome Antônia Florêncio Carlos de Andrade, cunhada do coronel José Pereira. Quando da eclosão do conflito rebelde em Princesa, “Dona Toinha” (como era chamada), contava apenas 39 anos de idade e era casada com Manoel Carlos de Andrade (Neco Carlos), irmão do coronel Zé Pereira. Nessa quadra violenta por que passou Princesa, quase todas as chamadas “famílias de bem”, se transferiram para residir nas cidades pernambucanas de Flores ou de Triunfo. Quando não todos, pelo menos mulheres e crianças, saíram da cidade rebelada. Dona Toinha, bateu o pé, e ficou. Era na casa dela onde aconteciam as reuniões do Estado Maior da tropa de Zé Pereira. Mesmo sem empunhar o rifle, a mulher, era uma das coordenadoras daquele conflito armado, por que não dizer, uma estrategista.

Mulher inteligente, destemida e determinada, dona Toinha, de tudo participava, desde a distribuição de armas e munições, até o supervisionamento do preparo das refeições para os cabras acantonados em defesa da cidadela rebelada. É tanto que, anos depois, na década de 1980, foram encontrados, embutidos nas paredes de sua casa de morada, vários cartuchos de rifles e fuzis usados naquela guerra. Em Princesa, durante todo o conflito, dona Toinha somente saiu da cidade quando o coronel Zé Pereira teve de sair também, para não ser preso, por ordem do Exército, quando da vitória da Revolução de 1930. Ela foi para a cidade de Flores, acompanhada de seus filhos pequenos. Mesmo assim, não escapou da perseguição dos vitoriosos, quando foi a única mulher a ser presa pela polícia paraibana. Era figura emblemática: um verdadeiro troféu para os vencedores!

Detida, junto com seus filhos menores, dona Toinha passou pela humilhação de ser conduzida, em cima da grade de um caminhão, pelas principais ruas da cidade de Princesa, em exposição à execração e ao deboche dos vitoriosos. Mesmo assim, não sucumbiu. Impávida, enfrentou essa humilhante situação de cabeça erguida sem jamais dar sinais de fraqueza. Passadas, as fogueiras da violência, foi, dona Toinha libertada e viveu por longos anos, em Princesa, onde morreu em idade provecta. Essas sete mulheres: Bezé, Ernestina, Cota, Xandu, Alexandrina, Mitonha e Toinha, num resgate histórico, estão, necessariamente, inscritas no panteão da glória daquela Guerra que foi, sem dúvida, o estopim da Revolução de 1930. Mulheres destemidas, exemplo de coragem e dignidade, num tempo em que o protagonismo de quase tudo, era reservado aos homens.



 

 

 

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